
A oportunidade de nascer pela segunda vez
A vida reside nos
segundos
“Esse ano passou voando”. “Sexta-feira não chega mais”. “Que hora mais demorada”. “Nem vi o tempo passar”. Falar sobre o tempo, ou a falta dele, faz parte das conversas e das expressões cotidianas, mas, raramente, nos questionamos sobre o real valor do tempo. Para uma mulher que entra em trabalho de parto, quanto demoram as horas seguintes para conhecer o rosto do filho? Para quem está prestes a se despedir de alguém amado, quanto correm os segundos? E para quem está sem fôlego, sem enxergar ou sem esperança de viver por conta da falência de um órgão, quanto tempo o tempo tem?
Desafiar esse senhor de todos os destinos é o que define a rotina daqueles que esperam por um transplante de órgãos. Até fevereiro de 2021, mais de 900 pessoas estavam nessa situação em Santa Catarina. Resistir enquanto a chance de renascer não chega se torna a única escolha viável. A luta é para transformar a espera em esperança e o desejo é de que o telefone toque e que a voz do outro lado da linha diga: temos um doador compatível.
Na outra ponta desse emaranhado de futuros possíveis e impossíveis, está uma família que acabou de perder um ente querido e se depara com a escolha de doar ou não os órgãos. Uma delicada e sensível decisão, o desafio de cogitar salvar vidas perante a morte. Por vezes, a pessoa que partiu deixou claro o desejo quanto a isso, tornando a opção muito simples. Por outras, um gigantesco número de dúvidas invade a mente e os corações daqueles que ficaram, impossibilitando a escolha.
Esclarecer essas dúvidas através da vivência de personagens que estiveram em ambos os lados da história é o objetivo desse caderno especial. Desde o diagnóstico da morte cerebral, passando pela autorização da família, a retirada dos órgãos do doador, o transporte, chegando ao receptor e à rotina pós-transplante, abordaremos os passos que envolvem um transplante de órgãos.
Santa Catarina tornou-se referência em logística nessa área. Passos milimetricamente calculados, equipes treinadas em nível de excelência, profissionais engajados e comprometidos.
Durante o processo, histórias se fundem e se renovam; fins se tornam começos e a dor se suaviza perante a possibilidade da continuidade.
O objetivo é que, após ler essas páginas, você converse com sua família sobre o desejo de ser ou não um doador de órgãos. Sabemos que nem sempre é simples tocar no assunto “morte”, mas é a forma mais garantida de que seu desejo seja atendido. Uma conversa franca sobre o assunto pode pôr fim à relutância diante do pedido de autorização e, com isso, salvar muitas vidas.

Esperança: para muitos, atravessar essas portas representa a chance de renascer. Foto: Matheus Kurth
Agradecimentos
Para entender todas as nuances que envolvem a doação de órgãos, contamos com a contribuição de várias pessoas e entidades, a quem devemos um imenso agradecimento.
A toda equipe do Setor de Transplantes e de Comunicação do Hospital Santa Isabel, de Blumenau, referência em transplantes, nosso reconhecimento pelo trabalho de excelência, dedicação incansável e um muito obrigado pela forma com que nos receberam em seus quartos, corredores e sala de cirurgia para que pudéssemos explicar aos nossos leitores com fidelidade de detalhes toda a logística e o aspecto humano envolvidos em todas as fases do transplante de órgãos. As horas que passamos ao lado de vocês foram não só esclarecedoras, mas também muito emocionantes e inspiradoras.
A senhora Matilde Dias, nossa gratidão por abrir seu coração e nos contar sobre a situação pela qual passam as famílias que perderam um ente querido e se deparam com a decisão de autorizar ou não a doação. Sua força e empatia são contagiantes.
Ao Marcos Silva, que aceitou conversar conosco enquanto realizava o processo de hemodiálise, nos situando sobre os desafios de quem luta diariamente contra uma doença que lhe tira a liberdade e a energia para realizar tarefas cotidianas. Esperamos que em breve seu nome conste na lista de transplantes e que você consiga realizar o procedimento para recuperar a “vida normal” que tanto deseja.
Ao Lucas Gonçalves de Souza, que dias após receber um transplante de rim, ainda internado em um dos quartos do Hospital Santa Isabel, nos recebeu ao lado da mãe para falar da alegria de ter uma nova chance. Sua tranquilidade e alegria nos impulsionaram na busca pela melhor maneira de abordar cada um dos temas desse caderno, para que os leitores possam tirar suas dúvidas e conversar acerca do assunto com suas famílias, para que muitas outras pessoas tenham estampado em seus rostos o mesmo sorriso de esperança com o qual você e sua mãe nos receberam naquela manhã.
Ao capitão Jair Pereira dos Santos Junior, da equipe do Arcanjo, pela recepção e disponibilidade em esclarecer todas as dúvidas e compartilhar conosco suas histórias. Seu relato nos fez vislumbrar o imenso poder que a dedicação sem ressalvas tem, ao ajudar a salvar vidas de pessoas que sequer conhecem. Assim também agradecemos ao policial rodoviário federal Lóes. Por vezes, é difícil imaginar quantos esforços combinados são necessários para que a perda de uma vida possa significar a continuidade de outra. Obrigado pela recepção e entrevista.
Agradecemos ainda à Isabeli Lourenço, que após ser citada pelo capitão Jair em sua entrevista, nos atendeu de forma célere e calorosa para contar sua história à espera de um transplante de coração. Sua força impressiona!
Enfim, agradecemos a vocês leitores, que nos acompanharão nessa viagem pelas histórias contadas por essas personagens. Que essa jornada seja esclarecedora para vocês assim como foi para nós e que os ajude a pensar na possibilidade da doação de órgãos e na conversa com suas famílias acerca do tema.
A espera
A vida ligada a uma máquina

Dependência: Marcos realiza
o processo
de hemodiálise
três vezes por
semana, durante quatro horas e
meia. Foto:
Matheus Kurth.
Em vias de entrar
para a lista,
Marcos Silva fala
sobre as longas
horas no setor de
hemodiálise
Há cerca de um ano e meio, a vida do mecânico e vigia, Marcos Silva, de 47 anos, mudou completamente. Foram quatro meses de mal-estar contínuo, a perda de peso chegou a 30 quilogramas, o apetite era nulo e a preocupação constante. No passado, os rins até já haviam dado sinais de que não estavam em pleno funcionamento. Dessa vez, a desconfiança dele não recaía sobre esse órgão, mas sim acerca de um possível “problema de úlcera”, algo apresentado recentemente.
Para a apreensão de Marcos, após muitas idas ao hospital, o diagnóstico recebido no dia 25 de dezembro fez o Natal perder todo o encanto e elevou a batalha pela vida ao item primordial da lista de tarefas diárias: os rins haviam parado de cumprir a função de controlar a concentração de substâncias no sangue.
Devido à condição de saúde deteriorada, ele passou um mês internado no Hospital Santa Isabel, de Blumenau e, em seguida, iniciou as sessões de hemodiálise na Renal Vida. Desde então, três vezes por semana, por 4,5 horas em cada uma delas, depende da máquina para filtrar as impurezas do sangue. A rotina é desgastante e exige muitas restrições, incluindo a alimentação, ingestão de líquidos, a possibilidade de trabalhar e até mesmo a liberdade de ir e vir.
"Quero fazer o transplante para voltar à vida normal, é uma rotina meio desgastante e cheia de restrições" - Marcos Silva
A esperança de deixar de lado a dependência da máquina surge do início do processo de inclusão do nome na Lista de Espera por um Transplante de Órgãos. Marcos conversou com o médico com quem realiza o acompanhamento e agora precisa fazer todos os exames de compatibilidade para, então, efetivar o cadastro. “Quero fazer o transplante para voltar à ‘vida normal’, é uma rotina meio desgastante e cheia de restrições. Agora, é seguir todos os passos e aguardar pela possibilidade do transplante”, confidencia.
A fila na qual Marcos deseja tanto entrar possuía 421 pessoas em fevereiro de 2020, ou seja, pacientes que aguardam por um transplante de rim em Santa Catarina.
Após a criação do Sistema Nacional de Transplantes no fim da década de 1990, o número de doadores vem crescendo anualmente no Brasil. Ainda assim, esbarra em muitas dúvidas e dificuldades, o que faz com que nem todos os órgãos viáveis sejam transplantados. Somados todos os órgãos e tecidos, o número de pessoas em espera no estado é de 953.

Fonte: SC Transplantes
Em 2020, a SC Transplantes registrou 628 notificações de morte encefálica, ou seja, possíveis doadores. Dessas, 283 se transformaram em doações efetivadas. Dentre os motivos pelo qual as demais não seguiram o mesmo caminho estão a não autorização familiar, em 119 oportunidades, e a contraindicação clínica em 118 casos.
Durante todo o ano de 2020, Santa Catarina realizou 914 transplantes, sendo que a pandemia influenciou bastante nesse quadro, uma vez que os procedimentos chegaram a ficar suspensos. Em 2019, por exemplo, o número de transplantes realizados no estado foi de 1.507.
Entrar para estatísticas como as expostas no parágrafo acima é o desejo de mais de 43 mil pessoas no Brasil. Homens, mulheres e crianças que correm contra o tempo para terem a chance de nascer pela segunda vez e de recuperar a autonomia para realizar tarefas cotidianas para as quais a maior parte da população não está atenta. Marcos e cada uma dessas 43 mil pessoas dependem de que a informação seja capaz de saciar as dúvidas e suplantar o medo.
A dúvida
Morte cerebral: como ter certeza da partida da pessoa amada?

Dor: perder um ente querido traz consigo um momento de muita angústia e incertezas. Foto: Matheus Kurth.
Entenda de que forma é feito o diagnóstico e a diferença entre essa condição e o coma
Existem dois tipos de doadores: o doador vivo e o doador falecido. No segundo caso, a captação pode acontecer mediante a detecção da morte encefálica (cerebral). Mas no que consiste esse diagnóstico? Como ele é feito? Qual a diferença da morte cerebral e do coma? A pessoa tem alguma chance de voltar à consciência? Essas são dúvidas muito vívidas para as famílias que se deparam com a situação, ou até mesmo para quem evita falar sobre doação de órgãos com os familiares e deixar claro os seus desejos.
Para isso, a enfermeira da Comissão Hospitalar de Transplante (CHT) do Hospital Santa Isabel, de Blumenau, Adriane Rogalski, de 32 anos, esclarece todos os passos inclusos no protocolo de detecção da morte encefálica e da possibilidade da doação de órgãos. Como o objetivo da Comissão é identificar potenciais doadores, a profissional lida diariamente com a dor das famílias e as dúvidas que acompanham o difícil momento.
Segundo Adriane, a desconfiança de que um paciente está evoluindo para a morte cerebral inicia através da alteração de sinais vitais e de reflexos de tronco. Com o objetivo de ter a certeza do diagnóstico, um conjunto de procedimentos foi instituído.
Para iniciar, o paciente passa por um exame de imagem, como uma tomografia, para identificar qual o motivo da ausência de reflexos. Também são retirados todos os sedativos, com a finalidade de identificar se as alterações apresentadas são em consequência da medicação. Com base nos resultados, o diagnóstico inicia. “Todo esse processo é muito criterioso. É preciso que dois médicos diferentes, com horas de intervalo, avaliem o paciente por meio de exames clínicos e complementares específicos, que demonstram a parada das atividades encefálicas”, destaca. A condição é permanente e irreversível.
Em 2017, o Conselho Federal de Medicina (CFM) alterou os procedimentos para detecção da morte cerebral e, com isso, o Brasil passou a ter um dos protocolos mais rígidos do mundo para confirmar o diagnóstico. Ainda assim, as dúvidas são compreensíveis e o melhor caminho para supri-las é a informação.

Fonte: SC Transplantes

Fonte: SC Transplantes
Diferença entre morte encefálica e coma
Adriane explica que os testes de diagnóstico avaliam a função do tronco encefálico, o qual é responsável pelos sinais básicos do paciente. Diferente da morte encefálica, o paciente que está em coma ainda possui alguma função cerebral ativa. “Na hora que o médico faz a avaliação, é testado pedacinho por pedacinho do cérebro. Se ele estiver em coma, algum reflexo será detectado”, pontua. Outra diferença é que o paciente em coma possui a capacidade de respirar sozinho, por isso os testes de respiração são importantes para o diagnóstico.
A família é comunicada de todos os passos
Aos primeiros sinais de que um paciente pode evoluir para o quadro de morte cerebral, a família é comunicada da situação e informada sobre os procedimentos seguidos a partir de então. O objetivo é fornecer todas as informações necessárias para que não reste nenhuma dúvida. “Se falarmos em morte encefálica e restar alguma dúvida, ela precisa ser esclarecida. Somos uma equipe exclusiva para fazer esse acompanhamento com os familiares”, esclarece Adriane.
Com a evolução para a morte cerebral, o paciente torna-se um potencial doador e é necessário
conversar com a família sobre a possibilidade de autorizar a captação. Esse momento, no entanto, é delicado. Por esse motivo, os profissionais que atuam no CHT passam por treinamento.
O desafio maior é respeitar o momento de luto e de dor, apresentando a possibilidade apenas quando a família estiver preparada para ouvir. “Eles precisam compreender tudo o que está acontecendo para, só então, ser colocada a possibilidade de doação e ter condições de sanar todas as dúvidas que possam surgir para trazer segurança sobre a opção que estão fazendo.”

"Eles precisam
compreender tudo o que está acontecendo para, só então, ser colocada a possibilidade de doação e ter condições de sanar todas as dúvidas que possam surgir para trazer segurança sobre a opção que estão fazendo"
- Adriane Rogalski
CHT: Adriane Rogalski atua na Comissão Hospitalar de Transplantes do HSI. Foto: Matheus Kurth.
Tempo para a retirada dos órgãos e liberação do corpo
Quando a família consente a doação dos órgãos, a equipe do CHT informa em quanto tempo o corpo estará liberado para ser velado. Esse período geralmente varia entre 12 e 18 horas, para que haja tempo hábil de realizar todos os procedimentos administrativos e clínicos. Dentre eles, está o envio de documentação para a Central de Transplantes do Estado, o qual é responsável por auditar o
trabalho da CHT. Posteriormente, é feita a sorologia a partir das amostras de sangue para identificar quem são os pacientes que estão em filas de transplantes e são compatíveis para receber os órgãos do doador. Eles podem estar em qualquer parte do estado ou do país, mas claro levando em conta o tempo hábil para o transplante. Só em seguida ocorre a cirurgia propriamente dita para realizar a captação.
O corpo do doador e o funeral
É muito comum as pessoas se questionarem sobre esse detalhe, mas a retirada de órgãos é uma cirurgia como qualquer outra e o doador pode ser velado normalmente. O único aspecto aparente será uma incisão cirúrgica no abdômen, fechada por um curativo. Nada impede que seja realizado um funeral tradicional, com o caixão aberto e no tempo comum.
A informação
O "sim" que possibilita recomeços
Tire as dúvidas sobre os
aspectos que
envolvem a
doação de órgãos

Doar órgãos é um ato de amor e solidariedade. Um único doador pode ajudar até 10 pessoas. Além dos aspectos que já abordamos nas páginas anteriores, como o diagnóstico da morte encefálica e a importância de conversar com a família sobre o tema, há muitas outras informações que podem ajudar na tomada dessa decisão.
Em quais situações é possível doar os órgãos?
Como abordado anteriormente, existem dois tipos de doadores: vivo e falecido. Quando a doação acontece em vida, é observado o grau de parentesco com o receptor. Se esse não for um fator envolvido, é preciso obter uma autorização judicial para que o transplante aconteça.
Com relação ao óbito por parada cardiorrespiratória, há algumas particularidades observadas, como a idade do paciente. Além disso, no Hospital Santa Isabel e no Estado de Santa Catarina, o único tecido retirado para transplante nesse caso são as córneas.
Não existe restrição absoluta à doação de órgãos, mas ela pressupõe alguns critérios estabelecidos. As contraindicações geralmente são quanto a pacientes que têm alguma sorologia positiva, como o HIV. Importante ressaltar que soropositivos não podem doar nem mesmo para outros pacientes com a mesma condição. A infecção por hepatite, qualquer outro quadro infeccioso não controlado ou alguns tipos específicos de tumores também impedem que a doação seja possível.
Em casos de diabéticos ou fumantes, a doação não fica automaticamente impedida, o que ocorre é a necessidade de uma avaliação minuciosa da condição dos órgãos. Caso eles estejam em boas condições, a captação acontece.


Quem já recebeu um órgão pode ser doador?
Sim. Desde que o órgão a ser doado não seja o recebido, pois ele não pode ser transplantado novamente. A enfermeira Adriane Rogalski relata um caso dessa natureza registrado pela equipe do Hospital Santa Isabel. O paciente havia recebido um transplante de fígado e, anos depois, sofreu uma queda que levou à morte cerebral e doou os rins.

No caso da doação por morte encefálica, a família pode escolher quais órgãos doar?
Ao aceitar a doação, por vezes a família solicita que as córneas não sejam retiradas e esse é um dos detalhes que a família pode escolher. No entanto, não cabe aos familiares a decisão quanto aos órgãos retirados e para quem eles serão destinados.


Existe limite de idade para ser doador de órgãos?
O que determina se o órgão é viável para transplante é o estado de saúde do doador. No entanto, podem ser observados alguns limites de idade em situações específicas.

Quem já fez transfusão de sangue pode doar também?
Sim. Antes da doação ser efetivada, uma amostra de sangue é coletada e enviada para análise para que sejam testadas todas as sorologias. Caso o paciente possua alguma doença da qual não tinha conhecimento, a doação é descartada.

O paciente que está esperando o transplante pode negar o órgão?
Pode acontecer. De acordo com Adriane, muito raramente os pacientes tomam essa decisão, por saberem que aquela oportunidade é rara e também pela chance de recuperar sua saúde.

A Covid-19 impede que alguém se torne doador?
Sim. Infelizmente, os pacientes que estão com o vírus não podem se tornar doadores. Adriane explica que no momento em que a família consente a doação, uma amostra é coletada e, caso o resultado seja positivo para o novo coronavírus, o paciente não pode ter nenhum órgão captado. Em relação às córneas, não pode doar caso tenha entrado em contato com alguém positivado nos últimos 28 dias. Esse foi um dos fatores responsáveis pela queda no número de transplantes realizados em 2020.


Como funciona a lista de espera por um órgão?
Os órgãos doados vão para pacientes que necessitam de um transplante e estão aguardando em lista única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada Estado e controlada pelo Ministério Público. Em princípio, os órgãos captados no estado são destinados a pacientes de Santa Catarina. Mas existem situações extremas em que algum paciente está em prioridade zero na fila devido à condição deteriorada da saúde, ou seja, ele está entre a vida e a morte e tem preferência, onde quer que esteja. Nesses casos, também é observada a distância, já que existe um tempo viável para que o transplante ocorra. No caso do coração, por exemplo, entre a captação e o implante, o tempo máximo é de quatro horas. Os órgãos doados também vão para pacientes de outros estados quando não há ninguém compatível na fila de espera.
Fotos: Matheus Kurth.
Contagem regressiva
Cada minuto faz toda a diferença quando o assunto é um transplante de órgãos. Cada um deles tem um tempo de isquemia, ou seja, um período máximo em que consegue manter suas funções fora do corpo humano.

Como funciona a lista de espera por um órgão?
Os órgãos doados vão para pacientes que necessitam de um transplante e estão aguardando em lista única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada Estado e controlada pelo Ministério Público. Em princípio, os órgãos captados no estado são destinados a pacientes de Santa Catarina. Mas existem situações extremas em que algum paciente está em prioridade zero na fila devido à condição deteriorada da saúde, ou seja, ele está entre a vida e a morte e tem preferência, onde quer que esteja. Nesses casos, também é observada a distância, já que existe um tempo viável para que o transplante ocorra. No caso do coração, por exemplo, entre a captação e o implante, o tempo máximo é de quatro horas. Os órgãos doados também vão para pacientes de outros estados quando não há ninguém compatível na fila de espera.
Critérios de compatibilidade
Conforme informações da SC Transplantes, os critérios para verificar a compatibilidade entre o doador e o receptor dependem de cada órgão. Em comum a todos eles está a compatibilidade sanguínea (sistema ABO). Para o coração, pulmão e fígado deve haver compatibilidade de peso e altura. Já para rins, é necessária compatibilidade genética (sistema HLA).
As informações são oriundas da SC Transplantes, da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (BTO) e coletadas durante entrevista com a enfermeira da Comissão Hospitalar de Transplante (CHT) do Hospital Santa Isabel, de Blumenau, Adriane Rogalski.
A decisão
Na despedida, a escolha de salvar vidas

Consentimento: apenas a partir da autorização da família é que os médicos realizam a captação de órgãos. Foto: Matheus Kurth.
Matilde Dias fala sobre a decisão de doar os órgãos do filho, que teve morte encefálica aos 28 anos de idade
Foi num domingo, dia 2 de dezembro de 2018, que o brilho do sorriso de Denis Natael Dias, de 28 anos, foi apagado de forma violenta. Atingido com um tiro na cabeça, o jovem foi internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) em estado gravíssimo.
Os pais foram avisados da situação e correram para o hospital, mas logo na primeira vez que viram o filho, sentiram em suas almas que o momento do adeus se aproximava. Denis estava intubado, o projétil havia entrado pelo olho e se alojou no cérebro do jovem, causando a morte encefálica quatro dias mais tarde.
A professora Matilde Solange Nunes dos Santos Dias, de 58 anos, mãe de Denis, descreve o momento como o mais triste de sua vida. Ela conta que no retorno para casa, após a primeira ida ao hospital, disse ao marido “o Denis não volta mais, pai”. No dia seguinte, o casal foi chamado pela equipe médica para conversar e, indo até o local, ela ouviu do pai de Denis o comentário que mais tarde se transformou na decisão posta em prática. “O meu marido perguntou o que eu achava de doarmos os órgãos do nosso filho e eu concordei na hora, pois sabíamos que ele não sairia mais daquela situação”, revela Matilde com as lágrimas da saudade escorrendo pelo rosto.
Ao serem recepcionados pela junta médica e ouvir qual era a condição do filho, eles expressaram o desejo de que, caso o filho não resistisse, se tornasse um doador de órgãos. Em retorno, receberam dos médicos toda a explicação sobre os procedimentos, inclusive a informação de que as funções cerebrais de Denis estavam definhando, mas ainda existiam. Portanto, era preciso aguardar a evolução do quadro clínico.
Os dias seguintes foram marcados pela angústia, a qual foi suavizada pelo tratamento ofertado pela equipe do hospital à família. A cada passo, a cada exame ou alteração da situação de Denis, Matilde e o esposo eram prontamente comunicados. Eles também tiveram todas as dúvidas sanadas acerca dos procedimentos de um possível transplante.
No dia 6 de dezembro, as funções cerebrais de Denis cessaram, os exames para diagnosticar a morte cerebral seguiram e, perante a confirmação, a família foi chamada para a despedida. Em detalhes, a mãe lembra que após o adeus da família, pela manhã, a equipe médica levou Denis para a sala de cirurgia para a captação dos órgãos por volta do meio-dia e, às 19h, o corpo foi liberado para a família proceder com o funeral e a despedida de parentes e amigos.
Em meio à dor da lembrança de todos os momentos difíceis, o rosto de Matilde se iluminou com um sorriso ao dimensionar o que o gesto da doação significou para ela e para o esposo. “Ele era um rapaz muito bom, mas penso que cada um tem seu tempo de vida aqui na terra e a sua missão a cumprir. Acredito que fazia parte da missão do Denis continuar fazendo o bem mesmo depois de partir.”
Continuidade: Matilde e o esposo optaram por doar os órgãos do filho Dênis, morto aos 28 anos. Fotos: Arquivo pessoal.
Recentemente, o coração dela se encheu de alegria ao encontrar, por acaso, o receptor de um dos órgãos do filho. No entanto, os dois nunca se encontraram pessoalmente, principalmente por conta da pandemia e dos riscos que o vírus representa para alguém transplantado, mas mantêm contato pela internet. Matilde diz ter conseguido enxergar na alegria do jovem, o sorriso de seu filho. Apesar do encontro ter ocorrido por acaso e não existir a possibilidade, fato determinado por lei, de que as famílias dos doadores e dos receptores sejam oficialmente apresentadas, a mãe espera que a vida e o destino a levem a conhecer outras pessoas salvas por Denis, visto que o objetivo dela é compartilhar dessa alegria.
Aliás, como professora, Matilde teve contato com alunos que enfrentaram doenças terríveis e necessitaram de um transplante para ter uma chance de continuar vivendo. A consciência da dificuldade enfrentada sempre a fez pensar sobre o assunto e contribuiu para que tivesse tanta certeza da decisão tomada. A gentil senhora de sorriso acolhedor pede que as pessoas reflitam sobre essa possibilidade. “O corpo é como uma caixa que possuímos durante a passagem aqui na terra. Quando partimos, o que fica são apenas boas lembranças para quem amamos. Enquanto isso, outras pessoas que ainda têm a chance de viver estão sofrendo, definhando, com a vida por um fio. A doação de órgãos é muito importante.”
"Foi o momento mais crucial de nossas vidas. Eu acredito muito que Deus me faz levantar todos os dias e pensar que eu e meu marido fizemos o bem e que meu filho está feliz pela decisão que tomamos" - Matilde Dias
O casal não teve dúvidas da decisão nem por uma fração de segundos e, agora, dois anos mais tarde, continuam com a certeza de terem tomado a decisão correta. “Foi o momento mais crucial de nossas vidas. Eu acredito muito que Deus me faz levantar todos os dias e pensar que eu e meu marido fizemos o bem e que meu filho está feliz pela decisão que tomamos.”
A importância de deixar o desejo claro
Diferente de Matilde, a maioria das pessoas possui dúvidas ao se deparar com essa tomada de decisão, sobretudo por estarem vivenciando a partida de alguém amado e as emoções intensas em que esse momento acarreta.
É por esse motivo que, apesar do assunto ser um tabu para muitos, falar com a família sobre a morte e o desejo de ser ou não um doador de órgãos é tão vital. A enfermeira da Comissão Hospitalar de Transplante (CHT) do Hospital Santa Isabel, Adriane Rogalski, esclarece que antigamente existia a possibilidade da família indicar no documento de identidade se era ou não doador de órgãos. No entanto, atualmente essa indicação não possui qualquer validade legal, portanto, os únicos que podem autorizar a doação são os parentes de primeiro e segundo grau.
Geralmente, o familiar opta por respeitar a vontade do ente querido e, sabendo qual era ela, pode decidir com mais segurança e tranquilidade. Se a opção for a de doar, o familiar assina um termo e, com a cópia dos documentos, a Comissão dá sequência aos procedimentos administrativos. Quando o possível doador é menor de idade, é necessário que haja o consentimento tanto da mãe, quanto do pai.
A corrida
Minutos contados do telefonema à chegada ao hospital

Inesperado: Quando Lucas recebeu a ligação correu direto para a mãe. Foto: Matheus Kurth.
Lucas Gonçalves de Souza foi um dos muitos que teve que "pegar" a BR após receber a notícia
A ligação chegou no dia 2 de fevereiro de 2021, às 23h30min, de forma inesperada e insistente. Ao acordar com o som, ele pegou o telefone, levou ao ouvido e escutou rapidamente as seguintes palavras: “Oi, é o Lucas Gonçalves de Souza?”. Ainda atordoado e sem saber do que se tratava, respondeu que sim e, com isso, obteve, sem sequer imaginar, a melhor notícia dos últimos meses: “Aqui é do Hospital Santa Isabel e temos um rim compatível para você”.
Dúvidas surgiram, o nervosismo e entusiasmo tomaram conta do ambiente e o coração começou a bater descompassado, era a ligação mais importante de sua vida. Ainda sem saber o que fazer, Lucas, de 28 anos, foi correndo ao quarto dos pais e direcionou a ligação para quem poderia compreender melhor o que a voz do outro lado da linha tentava explicar. “Mãe, atende aqui, é o meu rim”, dizia. A partir daquele momento, as lágrimas inundaram os olhos de quem estava por perto ou de quem recebeu rapidamente a notícia espalhada pela família. “Minha irmã me abraçou e choramos juntos. Mas foi muito engraçado, não sabia o que fazer”, relembra.
"Minha irmã me abraçou e choramos juntos. Mas foi muito engraçado, não sabia o que fazer" - Lucas Gonçalves de Souza
Em meio ao turbilhão de sentimento, a mãe de Lucas, Eliete Aparecida Gonçalves de Souza, de 54 anos, foi orientada a arrumar a mala do filho enquanto ele seguia registrando as recomendações. Do primeiro toque do telefone em diante, a corrida contra o tempo e a contagem regressiva haviam começado: eles teriam que chegar no hospital às 4h da manhã. Da cidade em que mora até Blumenau, onde o transplante seria realizado, a viagem dura em torno de 3h40min, ou seja, o caminho foi marcado pelo receio de não chegarem dentro do horário determinado. Felizmente, Lucas e a família contaram com o trânsito mais ameno registrado na madrugada para cumprir a jornada sem percalços.
No entanto, a correria não fica apenas por conta do paciente, está presente também na rotina da equipe multifuncional que aguarda no hospital. Para a coordenadora da Unidade de Transplantes do Hospital Santa Isabel de Blumenau, Carla Duarte, de 40 anos, por mais preparados que os profissionais estejam, há imprevistos externos que fogem do controle, como chuva, trânsito, entre outros fatores que atrasam e atrapalham os procedimentos. Do momento em que o paciente chega ao hospital, são necessários 40 minutos para prepará-lo para a cirurgia.
Dentro dessa rotina está também o entendimento de que, desde quando recebe a ligação, os ânimos do futuro transplantado e também da família estão exaltados e, por isso, algumas informações são difíceis de absorver. Para controlar o problema, Carla pontua que as orientações são repassadas pausadamente, conforme todo o processo se desenrola. “Com a família trabalhamos da mesma forma. Às vezes, eles vêm de longe e ficam perdidos com a questão de informação e, por isso, fazemos o acolhimento e vamos dando as informações por partes”, salienta.

Preparo: Carla explica que há uma equipe multifuncional à espera do paciente. Foto: Matheus Kurth.

Psicologia: Jaqueline evidencia a importância da saúde mental para o sucesso do transplante. Foto: Matheus Kurth.
Atuação em todas as fases
As atribuições da equipe multifuncional vão muito além do momento do transplante, elas iniciam quando o paciente descobre a enfermidade ou é informado de que necessitará de um novo órgão.
A psicóloga do Hospital Santa Isabel, Jaqueline Franzmann Zachow, de 31 anos, destaca que esse acompanhamento é realizado com seis profissionais de diferentes especialidades, dentre elas a psicologia. “Nós chamamos o paciente e a família e repassamos todas as orientações de como será o procedimento, quais serão os cuidados necessários, o período de internação, os riscos e outras informações”, explica. O objetivo principal é de que ele consiga conhecer melhor o que vivenciará e buscar recursos e sentimentos para compreender e amenizar o medo e as angústias.
Caso o transplante aconteça no horário em que a psicóloga está no hospital, Jaqueline também faz o acolhimento do paciente na sala de preparo. “Sempre tento dar um atendimento inicial e verificar como está a emoção naquele momento.” Para ela, garantir a saúde mental é garantir que 90% do transplante ocorra bem, pois diz ser necessário estar com tudo organizado no ambiente externo para, assim, estar de corpo inteiro na sala de cirurgia, valorizando as partes positivas do processo.
Segundos para uma nova vida
As experiências vividas por cada paciente desde a importante ligação, passando pela corrida contra o tempo para chegar ao hospital, o atendimento da equipe multifuncional até o transplante em si, são muito diferentes, no entanto, todas têm uma característica em comum: essa é uma das melhores contagens regressivas pela qual passarão na vida.
"Às vezes, eles vêm de longe e ficam perdidos com a questão de informação e, por isso, fazemos o acolhimento e vamos dando as informações por partes" - Carla Duarte
A viagem
Entre a euforia e o desespero, a
luz no fim do túnel

Terrestre: PRF auxilia escoltando o veículo do paciente durante o percurso necessário. Foto: Matheus Kurth.
PRF e Arcanjo auxiliam no transporte e escola dos pacientes, equipe médica e órgãos captados
Quando um paciente está na fila de transplantes e recebe o telefonema dizendo que há um órgão compatível, a maior dúvida compartilhada entre eles é o que fazer com essa informação. Diante disso, recebe a orientação de se dirigir o quanto antes ao hospital no qual a cirurgia será realizada. A partir desse momento, o sentimento do medo em não chegar no horário pode surgir dependendo de dois aspectos: distância e tempo.
Esses fatores variam de acordo com a cidade em que o paciente vive, onde o transplante será feito e qual órgão será implantado, pois cada um tem o tempo de isquemia diferente, ou seja, o período que se tem entre a retirada do órgão do doador e implante no receptor.
Imagine só. Você descobre que precisará de um transplante, sofre por alguns meses ou até anos à espera e, quando recebe a notícia de que um órgão compatível chegou, nem pensa duas vezes, pega o carro e sai em direção ao hospital. Mas, no meio do caminho, com o relógio correndo, avista luzes vermelhas indicando que os veículos à frente estão parados e percebe que não sairá de lá tão cedo. A pergunta que invade a mente é: como prosseguir?
Diante desse empecilho, muitos pacientes recorrem à Polícia Rodoviária Federal (PRF). O policial rodoviário federal da unidade de Blumenau, Lóes, de 42 anos, explica como funciona quando o acionamento é feito. “Recebemos a informação e organizamos, o mais rápido que pudermos, o trâmite necessário para tentar auxiliar da melhor maneira possível”, pontua.
Dentre os casos já presenciados pelo policial estão os que o paciente precisa de ajuda para abrir caminho por entre o tráfego intenso. Nessas situações, o veículo da Unidade Operacional de Policiamento (UOP) mais próxima faz a escolta do trânsito até chegar na unidade seguinte, que assume o trabalho. Dessa forma, diversos policiais são responsáveis por ajudar a chegar no destino final.
Lóes relembra uma das experiências vividas ao longo dos mais de 20 anos de profissão. “Em uma das vezes, chegamos faltando poucos minutos para atingir o limite. Graças a Deus deu certo e a pessoa ficou imensamente agradecida ao trabalho da PRF”, salienta.
Já com relação ao transporte de órgãos, esse fato não é muito comum na região em que Lóes atua, visto que o Hospital Santa Isabel, localizado em Blumenau, é polo de transplantes no estado e, por isso, é mais comum as pessoas se dirigirem até a cidade para receberem o transplante do que o órgão fazer o caminho inverso.
Além disso, os próprios hospitais possuem carros especializados para realizar o translado com os órgãos, inclusive com sirenes regularizadas, e, quando é necessário, realizam por si só esse deslocamento.
Ainda assim, a PRF é chamada quando é preciso fazer o transporte em horários de maior movimento. “Ocorre às vezes de sermos acionados para abrirmos o trânsito, mesmo com a viatura deles do hospital”, explica o policial.
"A sensação é de realização, de saber que você pode ajudar alguém" - Policial Lóes
Para Lóes, poder entregar para a sociedade uma das missões da PRF, que é de garantir a saúde, é gratificante. “A sensação é de realização, de saber que você pode ajudar alguém”, reflete. Mais gratificante ainda é receber em retribuição o agradecimento do paciente. “Por mais que eu tente explicar, não dá para falar em palavras o que a gente sente com o dever cumprido e, como ser humano, de poder salvar uma pessoa”, completa de forma emocionada.

Aéreo: Arcanjo já transportou órgãos, equipe médica e pacientes. Foto: Matheus Kurth.
Quando o deslocamento por meio terrestre não é mais suficiente, os pacientes, hospitais e, em algumas situações, a própria Polícia Rodoviária Federal acionam o transporte aéreo. Uma das aeronaves responsáveis por este trabalho é o Arcanjo, tripulação composta por profissionais do Corpo de Bombeiros Militar e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
De acordo com o capitão do Arcanjo, Jair Pereira dos Santos Junior, de 34 anos, essas missões são relativamente comuns, pois “o helicóptero possibilita uma versatilidade e uma rapidez que vêm ao encontro do que se busca na operação de transporte de órgãos”.
Por muitas vezes, a responsável por realizar o acionamento é a Central Estadual de Transplantes de Santa Catarina (SC Transplantes) e, conforme a demanda chega, os aviões ou helicópteros são chamados para fazer o apoio necessário. Dentro das aeronaves do Arcanjo, já passaram órgãos propriamente ditos, a equipe que efetuaria a cirurgia no doador e também, mesmo que não seja comum, receptores.
Capitão Jair contextualiza que as histórias envolvendo receptores foram de pessoas que receberam o telefonema, tiveram que se dirigir até um determinado hospital e “pegaram um momento de trânsito muito complicado, uma excepcionalidade, e acabam não conseguindo chegar no tempo correto”. Diante disso, fazem contato pelo número 193 e pedem apoio. “Nós já interceptamos, em rodovias, pacientes que receberiam um órgão e levamos para o hospital”, relembra.
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Fotos: Matheus Kurth.
Dos casos que o marcaram está o de Isabeli Lourenço, uma paciente de Jaraguá do Sul que aguardavam um novo coração. Em 2018, ela recebeu a ligação de que o órgão havia chegado e, nesse caso, precisava ir até Blumenau. Devido ao coração ter um dos tempos de isquemia mais curtos, somente quatro horas, a família solicitou apoio ao Corpo de Bombeiros Voluntários da cidade que, por sua vez, fez contato com o Arcanjo.
O combinado, então, havia sido que o embarque aconteceria no Hospital São José, localizado em Jaraguá do Sul. Quando a aeronave pousou no heliponto, Isabeli e o pai já estavam no local. Enquanto pai e filha subiam a bordo do helicóptero que permaneceu ligado, Capitão Jair e a equipe viveram um momento de emoção e gratidão.
Devido aos profissionais do Arcanjo estarem acostumados a trabalhar em situações de tristeza, que envolvem acidentes, desastres e mortes, o sorriso de Isabeli despertou uma emoção diferente em quem atuou na ocorrência. “Ver a alegria dela e do pai, a esperança que é receber um órgão, isso começou a tocar a gente naquele momento”, admite o capitão.
"A nossa parte dentro do transplante é o momento de dar esperança para alguém continuar vivendo" - Capitão Jair
Para ele, a etapa que passa por suas mãos é uma mais gratificantes do processo. “A nossa parte dentro do transplante é o momento de dar esperança para alguém continuar vivendo.”
Além desse acontecimento marcante para Jair, houve outra situação única e memorável. “Nessa ocorrência em questão, nós atuamos no transporte de, se não estou enganado, linfonodos. O propósito desse órgão específico era leva-lo a Florianópolis para passar por um exame de compatibilidade”, explica. Em um dia de meteorologia degradada, a equipe do Arcanjo 03, de Blumenau, realizou o deslocamento até Governador Celso Ramos, local em que o Arcanjo 01, da capital de SC, estava o esperando para realizar a interceptação e se dirigir até o local. Posteriormente, durante um conversa com a equipe da SC Transplantes, sem saber “participamos do primeiro transplante duplo feito em Santa Catarina”, relembra o capitão Jair de forma orgulhosa.
Essas são algumas histórias que marcam a alma e fazem o trabalho duro valer a pena. De um lado, há a honra de poder ajudar alguém a conquistar a segunda chance. De outro, há quem precisou de um “empurrão” a mais para chegar no hospital e compartilha a gratidão aos profissionais que percorreram ao seu lado a jornada a caminho de uma nova vida.
A recuperação
Mudança no semblante: uma
nova vida inicia

Organização: Equipe multifuncional trabalha para realizar a alta programada. Foto: Matheus Kurth.
Retomar a
vivência do
cotidiano,
com saúde e disposição, é o
sentimento da chegada à reta
final
“Ele está voltando ao Lucas normal, que era antes.” Essas foram as palavras utilizadas por Eliete Aparecida Gonçalves de Souza, de 54 anos, ao descrever, orgulhosa, como o filho está após o transplante de rim. Mesmo que, para ele, os primeiros dias de pós-cirurgia tenham sido difíceis, o novo órgão devolveu a vida para Lucas Gonçalves de Souza, de 28 anos.
Aos poucos, as dores vão dando espaço a uma recuperação leve e gradual. O pensamento de Lucas já viaja para os passos seguintes, cheios de desejos que vão desde as pequenas tarefas, como tomar um copo d’água de uma só vez, até às grandes realizações, como o retorno ao trabalho e reconstituição da autonomia. “O começo foi um pouco difícil, mas nada comparado a saber que daqui a pouco vou ter minha vida normal”, admite Lucas.
Os dias após a alta
No momento em que o paciente está prestes a receber a tão sonhada alta, a equipe multifuncional do Hospital Santa Isabel (HSI) se organiza para fornecer as informações necessárias para garantir a continuidade da recuperação. De acordo com a coordenadora da Unidade de Transplantes do hospital, Carla Duarte, de 40 anos, as explicações são fornecidas aos poucos para que sejam absorvidas separadamente. “Cada dia damos uma informação ou, às vezes, passamos uma orientação de manhã e outra à tarde”, explica.
O cuidado dos funcionários é visível em todos os detalhes. Na prescrição das medicações, por exemplo, a farmacêutica faz uma tabela e utiliza as imagens do sol e da lua para mostrar em que momento do dia o remédio deve ser ingerido. “Fazemos uma alta programada com uma equipe multiprofissional totalmente preparada para atender esse paciente”, destaca a coordenadora.
Para que a recuperação tenha o resultado desejado, o transplantado precisa tomar cuidados importantes, principalmente nos seis primeiros meses. Além disso, consultas periódicas são marcadas para que os exames sejam monitorados constantemente. De início, acontecem encontros semanais, passando para quinzenais, depois mensais, trimestrais e assim por diante.
Dentre os remédios que o paciente precisa tomar para o resto da vida, o mais importante é chamado de imunossupressor, medicamento que tem como função baixar a imunidade de forma proposital. Aliado a isso, uma boa alimentação precisa ser seguida nos primeiros três meses. Para o nefrologista do Hospital Santa Isabel (HSI), Guilherme Schramm, de 31 anos, essas duas frentes, juntamente com as consultas de rotina, têm o objetivo de evitar infecções ou eventos de rejeição, que podem ocorrer durante o caminho para a recuperação.
Além disso, o aspecto psicológico influencia para que o transplantado tenha uma reabilitação tranquila e sem interferências. Para a psicóloga do mesmo hospital, Jaqueline Franzmann Zachow, de 31 anos, transplante não é só uma mudança de órgãos e sim de hábitos, “mudança de valorização da vida e de costumes diários que eu preciso adaptar a minha rotina cotidiana”. Diante disso, esse acompanhamento também é ofertado ao paciente até completar um ano após a cirurgia. “O objetivo é ajudar nessa remodelação de vida, entender o que está difícil e mais fácil, o que está causando angústia, deixando a pessoa mais irritada e quais aspectos estão tranquilos nessa transição”, pontua.
A relação entre paciente e profissional
A mudança no semblante se torna visível já durante o pós-cirúrgico em determinados transplantes, como de rim. Em outros, pode demorar meses para que o paciente olhe para o espelho e se reconheça novamente. Essa transformação tira um peso das costas do transplantado e da família que acompanhou de perto o sofrimento do ente querido, mas também se torna importante para os profissionais que influenciaram na recuperação.
"Trabalho com aqueles que nascem pela primeira vez e aqueles que nascem pela segunda vez" - Carla Duarte
Carla costuma dizer que trabalha com a vida, pois, além de conviver com pacientes transplantados, tem como formação a enfermaria obstétrica. “Trabalho com aqueles que nascem pela primeira vez e aqueles que nascem pela segunda vez”, contextualiza.
Por receberem uma nova chance de viver, os pacientes são muito gratos aos profissionais de saúde que os conduziram através do grande desafio. Para a coordenadora, estar em meio a essas pessoas se tornou um privilégio. “Na verdade, aprendo muito mais com eles do que os ajudo”, completa.
Quem também compartilha desse sentimento é a Chefe do Setor de Transplantes Hepático do HSI, Dra. Maíra Silva de Godoy, de 40 anos. Segundo ela, é emocionante ver a diferença do paciente antes e depois da cirurgia no decorrer da recuperação. Para muitos que estão à beira da morte, como aqueles à espera de um fígado ou um coração, o transplante é a única opção. “Para alguns, a chance de morrer nos próximos dias ou meses é altíssima e, de repente, ele ganha um órgão e revive, modifica a vida e hábitos, volta a interagir, trabalhar e fazer coisas que não fazia”, pontua.

Recuperação: Dr. Guilherme explica cuidados que os transplantados devem tomar. Foto: Matheus Kurth.

Renovação: Dra. Maíra diz que o transplante é uma forma de devolver a vida aos pacientes. Foto: Matheus Kurth.
Muitos pacientes hepáticos, por exemplo, perdem a capacidade cognitiva, ficam confusos e podem não reconhecer seus familiares. Diante disso, “voltar para aquela interação e para aquela vida familiar é muito gratificante e a gente também vê isso”, relata Dra. Maíra. Por ver os pacientes diversas vezes ao longo da vida, a doutora fala sobre a construção de uma relação que se assemelha à existente entre mãe e filho. “A gente cria um vínculo muito grande com tudo isso, com a família e com a mudança.”
"Para alguns, a chance de morrer nos próximos dias ou meses é altíssima e, de repente, ele ganha um órgão e revive [...]" - Dra. Maíra Silva de Godoy
Muitos pacientes hepáticos, por exemplo, perdem a capacidade cognitiva, ficam confusos e podem não reconhecer seus familiares. Diante disso, “voltar para aquela interação e para aquela vida familiar é muito gratificante e a gente também vê isso”, relata Dra. Maíra. Por ver os pacientes diversas vezes ao longo da vida, a doutora fala sobre a construção de uma relação que se assemelha à existente entre mãe e filho. “A gente cria um vínculo muito grande com tudo isso, com a família e com a mudança.”
Diariamente, os profissionais de saúde estão em contato com diversos pacientes que aguardam o transplante, já realizaram a cirurgia e passam pela recuperação ou mesmo os que comparecem às consultas de retorno. Por ser responsável por prestar o atendimento no pré-transplante, durante a cirurgia e também no pós-cirúrgico com consultas ambulatoriais, Dr. Guilherme relembra uma história que lhe marcou. Por ter diabetes tipo 1 e desenvolver doença renal muito cedo, um dos pacientes precisou realizar um transplante duplo, de pâncreas e rim, e como teve intercorrências ao longo do primeiro ano, criou uma amizade com o nefrologista. “Justamente porque ele sempre internava nos momentos em que eu estava presente naquele momento no Setor de Transplantes e acabamos criando um vínculo. Hoje em dia mantemos o contato, ele está muito bem com os dois enxertos”, explica.
Uma nova vida
Ter um órgão transplantado dentro de si exige uma série de cuidados até que o paciente esteja apto a retomar a rotina. Alguns desses cuidados se tornam permanentes. O transplante é o primeiro passo de uma longa caminhada com destino a uma vida plena e saudável.
A vitória
A dádiva da vida em cada batida do coração

A menina do coração: Isabeli escreveu um livro contando a experiência como transplantada. Foto: Matheus Kurth.

A menina do coração: Isabeli escreveu um livro contando a experiência como transplantada. Foto: Matheus Kurth.
Isabeli Lourenço
carrega no peito
um órgão doado e a alegria de uma segunda chance
Era um dia cinzento que trazia consigo, ainda, o peso da falta de ar causada por um coração bombeando sangue com força de contração inferior a 30%. Até mesmo a prazerosa sensação de boiar sobre a água de uma piscina foi forçada a ficar de lado diante da exaustão. A solução era buscar o aconchego da cama, na tentativa de preservar as forças.
O sopro de esperança chegou sem aviso, pouco depois das 16 horas, através de uma ligação telefônica: “levanta, o teu coração chegou!” Ainda era preciso encontrar o meio para chegar ao hospital a tempo e a solução veio do céu. Naquele 14 de março de 2018, o Arcanjo 03 decolou do Hospital São José, de Jaraguá do Sul, em direção ao Hospital Santa Isabel, de Blumenau, levando consigo Isabeli Lourenço, hoje com 30 anos, e todo o seu desejo de renascer.
A batalha de Isabeli pela vida havia começado muitos anos antes, na adolescência. Atleta de natação, surfista e então estudante de fisioterapia, ela tinha apenas 18 anos quando notou algumas arritmias. Pela vida ativa e saudável, não imaginou que possuísse uma doença cardíaca. Ainda assim, resolveu consultar um médico especialista para tirar a dúvida.
O diagnóstico foi de cardiomiopatia hipertrófica. Começava então uma maratona de cirurgias e internações. Aos poucos o corpo de Isabeli apresentava os sinais do avanço da doença, até que aos 25 anos ela precisou parar de surfar e de trabalhar. O principal sintoma era a falta de ar, comprometendo a circulação sanguínea e o sistema nervoso central.
Quando as intervenções não funcionaram mais e a condição evoluiu para uma insuficiência cardíaca congestiva, Isabeli precisou implantar um desfibrilador como forma de reverter uma possível parada cardíaca. “A morte súbita era um risco, então o desfibrilador interno tinha a função de reanimar o coração caso fosse necessário”, explica. A falta de ar era uma companheira constante, impedindo que ela caminhasse sequer uma quadra e, com isso, os afazeres cotidianos ficaram restritos.
Fotos: Arquivo pessoal
Isabeli tinha 27 anos quando o cardiologista a informou que era chegado o momento de entrar para a lista de transplantes, não havia outra solução viável. A partir daí foram cinco meses de espera e muitas internações. “Para quem olha de fora, cinco meses parecem pouco, mas para quem está passando a cada dia pela falta de ar e sente o cansaço aumentando, é muito tempo. A sensação era de incerteza, eu ia dormir sem saber se acordaria na manhã seguinte.”
Com a noção de que cada dia era um presente, a alegria da notícia de que receberia um transplante fez com que Isabeli entrasse em um mundo de introspecção. Os instantes após a ligação recebida foram marcadas pela sensação de urgência, envolta em uma aura de esperança. O esposo de Isabeli estava na Argentina, viajando a trabalho, ela então ligou para o pai, que acionou os Bombeiros Voluntários de Jaraguá do Sul. Por sua vez, a corporação jaraguaense entrou em contato com a equipe do Arcanjo 03. Naquele dia, o mau tempo poderia ter impedido a decolagem, mas a oportunidade de transportar alguém para uma nova vida encontrou na perícia e na determinação da equipe do Arcanjo uma forma de abrir caminho em meio às nuvens.
Após buscar Isabeli em Jaraguá do Sul e deixá-la no hospital Santa Isabel, de Blumenau, o Arcanjo 03 decolou novamente para buscar o cirurgião que faria o transplante, ele havia sido transportado por outra aeronave até o Aeroporto de Blumenau e precisava chegar ao hospital o mais rápido possível. “Eu me tornei fã número um deles”, conta Isabeli em meio a um largo sorriso.
A gratidão é tanta que ela mantém contato com a equipe até hoje. Essa relação tomou forma um ano após o transplante, quando ela recebeu o convite para participar de uma homenagem chamada “O momento do reencontro”. “Fiquei muito feliz por poder abraçar cada um deles em retribuição.” Após uma longa recuperação, construída passo a passo, Isabeli voltou a praticar atividades físicas, surfar e trabalhar. A rotina diária inclui cuidado com a alimentação, a ingestão de medicamentos imunossupressores e a manutenção do condicionamento físico.
Fotos: Arquivo pessoal
A história de Isabeli deu vida a um livro “A menina do coração – a história de um transplante” de sua autoria. Nele, a jovem descreve a importância de dar valor à vida e a cada um dos momentos, além de destacar a relevância da doação de órgãos. “Quando tinha o coração fraquinho, posso dizer que estava andando de mãos dadas com a morte. Quem chegou a esse ponto sabe o quanto a vida é rara e o quanto respirar é maravilhoso”, pondera.
Para ela, doar órgãos é um ato de amor, seja em vida ou após a morte. “Quem doa não salva só a vida do transplantado, mas também da família que acompanha toda essa luta.”
O pedido de Isabeli e de todos os entrevistados ao longo deste caderno é de que as pessoas busquem informações para sanar as dúvidas acerca da possibilidade de se tornar um doador. E que, após tomada a decisão, converse com a família sobre o desejo. Tomar essa atitude pode salvar muitas vidas.
"Quando eu tinha o coração fraquinho posso dizer que estava andando de mãos dadas com a morte. Quem chegou a esse ponto, sabe o quanto a vida é rara e o quanto respirar é maravilhoso" - Isabeli Lourenço
A história de Isabeli deu vida a um livro “A menina do coração – a história de um transplante” de sua autoria. Nele, a jovem descreve a importância de dar valor à vida e a cada um dos momentos, além de destacar a relevância da doação de órgãos. “Quando tinha o coração fraquinho, posso dizer que estava andando de mãos dadas com a morte. Quem chegou a esse ponto sabe o quanto a vida é rara e o quanto respirar é maravilhoso”, pondera.
Para ela, doar órgãos é um ato de amor, seja em vida ou após a morte. “Quem doa não salva só a vida do transplantado, mas também da família que acompanha toda essa luta.”
O pedido de Isabeli e de todos os entrevistados ao longo deste caderno é de que as pessoas busquem informações para sanar as dúvidas acerca da possibilidade de se tornar um doador. E que, após tomada a decisão, converse com a família sobre o desejo. Tomar essa atitude pode salvar muitas vidas.
Diretor geral: Ismael Ewald Limberger
Jornalista: Janaina Possamai
Redação: Laura Sfreddo
Edição digital: Laura Sfreddo e Andressa Rafaela Raduenz
Vídeos: Matheus Kurth